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domingo, 8 de dezembro de 2024

Os Pastores Eram Malvistos Quando Jesus Nasceu?

Quando nos aproximamos do Natal, muito se fala sobre a má fama dos pastores em Israel na época do nascimento de Jesus. Mas isso é verdade? O que é fato e o que é ficção nessa história?

Quando nos aproximamos do Natal, muito se fala sobre a má fama dos pastores em Israel na época do nascimento de Jesus. Mas isso é verdade? O que é fato e o que é ficção nessa história?

Apresentando a lenda

A história do Natal é familiar para a maioria dos cristãos, incluindo uma manjedoura, um bebê, três magos, animais e pastores. Ela nos é tão conhecida que nada parece estar fora do lugar. Lucas 2.8-12 diz: “Havia, naquela mesma região, pastores que viviam nos campos e guardavam os seus rebanhos durante as vigílias da noite. E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, lhes disse: ‘Não tenham medo! Estou aqui para lhes trazer boa-nova de grande alegria, que será para todo o povo: é que hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto servirá a vocês de sinal: vocês encontrarão uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura’”. Os leitores originais do evangelho de Lucas tinham uma perspectiva diferente dessa cena. Do seu ponto de vista, seria escandaloso pensar que Deus poderia anunciar aos pastores o nascimento de Cristo como um bebê recém-nascido. Por que Deus convidaria pastores quando poderia ter convidado Herodes, o Grande, o sumo sacerdote ou César? Quem eram os pastores?

Os pastores eram párias da sociedade, sem dinheiro, sem educação e sem cultura. Eles deviam ser socialmente evitados. Se você estivesse caminhando por uma rua e um pastor viesse na sua direção, você cruzaria para o outro lado da rua. Você não gostaria de estar perto de um pastor. Na verdade, eles não podiam ser juízes, e seu testemunho era inválido no tribunal.

Eles também eram párias religiosos. Seu trabalho os fazia cerimonialmente impuros; logo, não lhes era permitida a entrada no templo. Eles eram considerados tão inferiores e sujos quanto prostitutas. Esses homens foram excluídos da sociedade judaica durante sua vida inteira, e Deus os convidou para o nascimento mais importante da história do mundo. Ele não convidou César, Herodes, o Grande, ou os líderes judeus; ele convidou pastores. E esse é um tema no evangelho de Lucas: Deus alcançando os marginalizados pela sociedade – os pobres, as mulheres e os escravos. Deus busca aqueles que vivem à margem da sociedade. Olhe para os homens que Jesus escolheu para serem seus discípulos. Muitos deles eram pescadores destreinados e incultos. Outro era um judeu traidor: um coletor de impostos. Jesus elevou os marginalizados e fez deles líderes de seu ministério na terra. Perceber isso deveria nos dar esperança. Se Deus alcança aqueles que estão à margem, certamente pode alcançar você e eu.

Desvendando a lenda

Muitos estudiosos chegaram à conclusão de que os pastores eram párias da sociedade e repetiram esse conceito vez após vez. Por exemplo, Farrar disse, em 1893: “Os pastores nessa época eram uma classe desprezada”. Strack e Billerbeck (1924) disseram: “Os pastores eram pessoas desprezadas”. Stein (1992) afirmou: “Em geral, pastores eram desonestos e impuros de acordo com os padrões da lei. Eles representam os excluídos e pecadores pelos quais Jesus veio”. Butler (2000) disse: “Pastorear tinha deixado de ser um negócio familiar, como nos tempos de Davi, para ser uma ocupação desprezada”. Por fim, Utley (2004) declarou: “Os rabinos os consideravam como párias religiosos, e seu testemunho não era admissível no tribunal”. Essas são apenas algumas citações de estudiosos ao longo dos últimos cento e poucos anos.[1]

Três fontes principais são utilizadas para se chegar a essa conclusão. Primeiro, Aristóteles é citado como tendo dito que, entre as pessoas, “os pastores são os mais preguiçosos, que levam uma vida ociosa e obtêm sem problemas o seu sustento de animais domesticados; seus rebanhos vão de um lugar a outro em busca de pasto, e eles são compelidos a segui-los, cultivando uma espécie de fazenda viva”.[2] Aristóteles declarou que o pastoreio é fácil por causa dos animais envolvidos.

Usar Aristóteles como informação básica para a compreensão de Lucas 2 tem dois problemas. Primeiro, Aristóteles não era judeu e não vivia em Israel; ele era grego e vivia na Grécia. Suas visões a respeito do pastoreio são praticamente irrelevantes para o judaísmo do primeiro século. Segundo, ele viveu mais de 300 anos antes do nascimento de Cristo. Isso também faz que sua visão não seja útil para entender o Novo Testamento. Ele viveu em uma cultura diferente, em uma sociedade diferente, durante uma época diferente.

Os estudiosos recorrem a diversas fontes para selecionar material do pano de fundo judaico para o Novo Testamento. As duas principais fontes usadas para entender os pastores no Israel do primeiro século são a Mishná e o Talmude Babilônico.[3] A Mishná é uma coletânea de ditados rabínicos, em que os rabinos debatiam questões referentes ao Antigo Testamento e à lei mosaica. Essa coleção de tradições rabínicas provém do período desde antes do início do ministério público de Cristo e indo até por volta de 200 d.C. Ela foi escrita entre 200 e 250 d.C. Essas tradições contidas na Mishná podem, às vezes, ser úteis para entender o Novo Testamento, dependendo de diversos fatores (como a data em que o rabino é citado).[4]

A segunda fonte é o Talmude Babilônico. Essa obra, compilada por volta de 500 d.C., contém interpretações rabínicas do Antigo Testamento e interpretações baseadas na Mishná. A Mishná contém debates rabínicos sobre a interpretação e aplicação corretas da lei do Antigo Testamento, e o Talmude contém rabinos debatendo o conteúdo da Mishná. Em geral, a informação no Talmude não é útil para interpretar o Novo Testamento. Muitas das citações são simplesmente tardias demais para serem úteis de forma confiável, pois os rabinos estão muito afastados do contexto do primeiro século.

Eu não consegui encontrar uma única fonte de Israel no primeiro século que apoiasse a visão de que pastores eram párias da sociedade.

Além de Aristóteles, um comentário de Fílon e uma afirmação na Mishná, a maioria das citações usadas para demonstrar que os pastores eram desprezados foi tirada do Talmude Babilônico. Eu não consegui encontrar uma única fonte de Israel no primeiro século que apoiasse a visão de que pastores eram párias da sociedade. Portanto, esse ponto de vista é datado depois dos eventos sendo estudados em Lucas 2. É uma informação não confiável e deveria ser descartada da interpretação dos Evangelhos.

Pistas contextuais

Uma pista no contexto, um indício sutil, apoia a visão oposta da lenda. Lucas 2.18 diz: “Todos os que ouviram se admiraram das coisas relatadas pelos pastores”. Eles não estavam admirados porque pastores as estavam relatando; eles estavam admirados pela mensagem dos pastores. Se pastores eram vistos como excluídos da sociedade, as pessoas ficariam chocadas que eles estivessem envolvidos no processo. Em vez disso, ficaram maravilhadas com a história em si. Isso é uma pista contextual de que os pastores não eram considerados párias da sociedade.

Um breve retrato bíblico de pastores

Há uma evidência melhor para a ideia de que pastores não eram vistos como marginalizados: o retrato bíblico dos pastores como um todo. A descrição dos pastores no Antigo e Novo Testamentos seria formativa para a mente dos judeus e dos cristãos do primeiro século.

Começando no Antigo Testamento, Abraão era pastor. Gênesis 13 o descreve como possuindo muito gado, manadas e rebanhos de ovelhas. Êxodo 3.1a diz que Moisés era pastor: “Moisés apascentava o rebanho de Jetro, o seu sogro, sacerdote de Midiã”. Davi era pastor (de acordo com 1Sm 17) e cuidava dos rebanhos de seu pai. Esses três homens são pilares do Antigo Testamento. Abraão, Moisés e Davi estão todos conectados com a atividade do pastoreio, e todos os três eram muito estimados na sociedade judaica.

Abraão, Moisés e Davi estão todos conectados com a atividade do pastoreio, e todos os três eram muito estimados na sociedade judaica.

Deus também é retratado como um pastor no Antigo Testamento. Um dos versículos mais famosos de toda a Escritura proclama o seguinte: “O Senhor é o meu pastor” (Sl 23.1a). Gênesis 49.24 diz: “O seu arco, porém, permanece firme, e os seus braços são feitos ativos pelas mãos do Poderoso de Jacó, sim, pelo Pastor e pela Pedra de Israel”. Salmos 80.1 diz: “Dá ouvidos, ó pastor de Israel…”. O Senhor fala em Ezequiel 34.12, dizendo: “Como o pastor busca o seu rebanho, no dia em que encontra ovelhas dispersas, assim buscarei as minhas ovelhas. Eu as livrarei de todos os lugares por onde foram espalhadas no dia de nuvens e densas trevas”. Muitos outros poderiam ser citados, mas esses já são o suficiente. Um judeu no primeiro século conectaria o pastoreio a Abraão, Moisés, Davi e ao próprio Deus.

No Novo Testamento, Jesus está intimamente ligado ao tema do pastor. Mateus 2.6 descreve Jesus como um pastor: “E você, Belém, terra de Judá, de modo nenhum é a menor entre as principais de Judá; porque de você sairá o Guia que apascentará o meu povo, Israel”. Se pastores fossem vistos como párias da sociedade, é bastante duvidoso que Mateus ligaria Jesus à terminologia pastoral. Ele o faz novamente em Mateus 26.31: “… porque está escrito: ‘Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão dispersas’”. A passagem mais poderosa que liga Jesus ao tema do pastor é João 10. Jesus fala sobre pastoreio e se coloca no papel do pastor, chamando a si mesmo de “o bom pastor” (Jo 10.11). Isso seria um paradoxo se pastores fossem vistos como prostitutas. Há referências a Jesus como pastor até mesmo fora dos Evangelhos (veja Hb 13.20; 1Pe 2.25; 5.4). Não há hesitação no Novo Testamento em referir-se a Jesus como pastor.

O retrato bíblico de um pastor é extremamente positivo no Antigo e Novo Testamentos.

Por fim, líderes de igrejas são chamados de pastores. Em Atos 20.28, Paulo explica que aqueles que supervisionam devem “pastorea[r] a igreja de Deus”. Pedro diz aos líderes eclesiásticos que “pastoreiem o rebanho de Deus que há entre vocês” (1Pe 5.2). Não se vê qualquer sinal de vergonha em referir-se aos líderes de igrejas como pastores.

Muitos estudiosos ensinaram que pastores eram marginalizados pela sociedade no Israel do primeiro século. Suas fontes são datadas, geralmente, de muitos anos depois do período do Novo Testamento, além de Aristóteles, que era de uma cultura diferente e viveu 300 anos antes de Jesus. Lucas 2.18 parece inclinar-se contra a visão dos pastores como párias. O retrato bíblico de um pastor é extremamente positivo no Antigo e Novo Testamentos.

Aplicação

Embora pastores não fossem excluídos da sociedade, eles estavam em uma classe inferior e representavam os pobres e humildes.[5] Deus escolheu usar os componentes pobres e humildes da sociedade para divulgar o seu maravilhoso anúncio do nascimento de seu Filho. Jesus não é apenas para os ricos.

Igualmente, Lucas 2 conta a história de um evento essencial na história da humanidade. Deus e seus anjos estão empolgados e querem regozijar-se com o que está acontecendo. Esse é o começo de uma vida que será vivida em total submissão e obediência a Deus. Jesus, o segundo Adão, veio e ele providenciará perdão dos pecados e reconciliação com Deus. É por isso que Deus e seus anjos estão tão alegres, pois a história está começando. Deveríamos estar animados e contar apaixonadamente aos outros sobre como Jesus veio e o que ele fez.

Notas

  1. F. W. Farrar, The Gospel According to St Luke (Cambridge: Cambridge University Press, 1893), p. 112; Herman L. Strack e Paul Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, 6 vols. (Munique, Alemanha: Beck, 1924), 2:113 (tradução do autor); Robert H. Stein, Luke (Nashville: B&H, 1992), p. 108; Trent C. Butler, Luke (HNTC) (Nashville: B&H, 2000), p. 29; Robert James Utley, The Gospel According to Luke (Marshall, TX: Bible Lessons International, 2004), Lucas 2.8.
  2. Aristóteles, Politics, 1.8; citado em James S. Jeffers, The Greco-Roman World of the New Testament Era: Exploring the Background of Early Christianity (Downers Grove: InterVarsity, 1999), p. 21; Matthew Montonini, “Shepherd”, The Lexham Bible Dictionary, ed. John D. Barry e Lazarus Wentz (Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2012). É possivelmente por esse motivo que Fílon, On Husbandry, p. 61, refere-se ao “cuidado de bodes ou ovelhas” como “inglório”.
  3. Estudiosos também usam Fílon de Alexandria (judeu helenístico do primeiro século), Josefo (judeu do primeiro século) e obras intertestamentárias apócrifas e pseudepigráficas.
  4. Embora eu não tenha encontrado nenhuma fonte que cite a Mishná, Qidduchin 4.14 poderia ser citado como uma evidência de uma visão negativa em relação aos pastores. Essa visão foi dada pelo rabino Abba Gurion, de Sidom, e é datada por volta de 165-200 d.C. Evidências ao contrário na Mishná incluiriam Bekhorot 5.4: “Acredita-se que os pastores israelitas [testemunham que as manchas apareceram sem querer]”.
  5. Embora essa aplicação possa soar semelhante ao ensino lendário, dizer que alguém é “pobre e humilde” é radicalmente diferente de compará-lo a uma prostituta. Alcançar a aplicação correta usando os dados errados não é um caminho hermenêutico apropriado.

Este artigo foi adaptado de Lendas Urbanas do Novo Testamento, por David A. Croteau.

  • David A. Croteau

    David A. Croteau (Ph.D., Southeastern Baptist Theological Seminary) é deão do seminário e da escola de ministério da Columbia International University desde 2021. Ele leciona cursos de Novo Testamento e grego e é membro da Evangelical Theological Society. Dr. Croteau já ensinou em vários países ao redor do mundo.

Lendas Urbanas do Novo Testamento

por David A. Croteau

Uma obra que corrige muitas lendas urbanas que temos da história da igreja, desde a igreja primitiva até os tempos modernos.



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